maio 19, 2006

Como a CUT Nacional derrotou o sindicalismo baiano

Por Everaldo Augusto

O presidente da CUT/Bahia, nas duas últimas gestões, Everaldo Augusto, comenta em artigo os acontecimentos envolvendo os resultados do Congresso Estadual da CUT realizado em Salvador nos dias 12 e 13 de maio e denuncia mais uma vez a interferência da CUT Nacional no Congresso da Central na Bahia.

A história do 11º Congresso Estadual da CUT Bahia, 11º CECUT, pode ser contada de diversas formas. Entretanto, quaisquer que sejam elas, um fato central não pode ser negado: a decisão da CUT Nacional, de "fabricar" maioria a favor de um grupo político, através de casuismos congressuais, derrotou o movimento sindical baiano e deu a "vitória" ao grupo Articulação Sindical, minoritário no 11º CECUT/Bahia e majoritário na direção nacional da Central.Não é a primeira vez que a cúpula da Central interfere nos Congressos da CUT na Bahia. Nos dois últimos congressos, para ficar no passado recente, manipulações no cadastro das entidades filiadas, perpetradas a partir da secretaria geral e da tesouraria nacional da Central, alteraram a correlação de forças no CECUT, transformaram a minoria em maioria. A vitória da Articulação Sindical só não se consumou graças à reação enérgica dos sindicatos atingidos. É de se lamentar que, nos dois episódios, os congressos terminaram em pancadaria generalizada, sindicalistas feridos, militantes hospitalizados, dirigentes cutistas agredidos, exploração do fato pela direita e exposição da Central à execração pública. Posteriormente, a direção nacional da CUT reconheceu a maioria de fato existente a favor da Corrente Sindical Classista(CSC) e a direção da CUT Bahia foi recomposta. Convém lembrar que os dois últimos mandatos da CSC à frente da CUT Bahia reconstruiu a Central no Estado, superando a degeneração, o descrédito, o burocratismo e o imobilismo que haviam tomado conta da Central no Estado durante o período anterior aos mandatos da CSC.Para alguém que está de fora do movimento sindical pode ser difícil compreender como pode ser derrotada por casuismos uma corrente política que dirige a Federação de Trabalhadores na Agricultura da Bahia (FETAG) com quatro milhões de trabalhadores na base; a Federação de Metalúrgicos e todos os sete sindicatos do ramo metalmecânico no Estado; a Federação de Bancários, o Sindicato dos Bancários da Bahia e mais cinco sindicatos do ramo na Bahia; a Federação da Construção Civil e os principais sindicatos da construção e da madeira; todos os principais Sindicatos de Servidores Públicos estaduais: da saúde, da fazenda, de universidades, inclusive a APLB Sindicato, do ramo da educação pública, com mais de 60 mil filiados; a Federação de Alimentação e sindicatos da área; sindicatos de frentistas, moto-boys, médicos, farmacêuticos, jornalistas, servidores da Justiça Federal, policiais militares, mineradores, aeroviários, trabalhadores em pedreiras e mármores, funcionários técnicos de escolas particulares, servidores municipais de dezenas de municípios no Estado; o Sindicato dos Comerciários de Salvador e dezenas de outros sindicatos do ramo na Bahia, sem falar das oposições sindicais em diversas categorias.A resposta é muito simples. Todo o processo de preparação e realização de Congressos da CUT é centralizado, de modo absoluto, pela direção nacional, sobretudo pela tesouraria e secretaria geral. Nos anos anteriores, a CUT Nacional se dava ao requinte de enviar um funcionário da tesouraria nacional para ser uma espécie de interventor no Congresso Estadual. A ele cabia a última palavra sobre quem participava ou não do Congresso. Neste 11º CECUT/ BA a manipulação do colégio eleitoral se deu por meio de três fatos principais e uma infinidades de outros secundários ou, às vezes, prosáicos. Vamos nos ater apenas aos fatos principais, ei-los: Veto político a sindicatos recém -filiados Por iniciativa da CSC, 74 novos sindicatos solicitaram filiação, dentro do prazo regulamentar para participar do CECUT e respeitando as normas do estatuto da Central. Na ausência de motivos reais, pretextando tão somente razões de ordem administrativas e secundárias, a Articulação Sindical da Bahia fez 74 recursos contra estas referidas filiações. Sem que esses recursos fossem julgados em quaisquer instâncias da Central, a direção nacional da CUT passou a dar tratamento diferenciado a estas filiações. Sindicatos com possibilidade de alinhamento com a Articulação foram aceitos como filiados, como é o caso do STR de Boninal, incluído no rol das 74 novas filiações, aliado da CSC, mas dirigido por um companheiro vereador do PT, condição que o colocava como provável aliado da Articulação. Os demais foram rejeitados, ainda que de maneira informal, já que oficialmente a CUT não se pronunciou, apenas não os relacionou entre as entidades aptas a participar do CECUT. Convém lembrar que 30 destes sindicatos têm como razão principal para a não filiação o fato de não constar da ata da assembléia de filiação o nome do representante da CUT, fato que é, convenhamos, extremamente secundário. A situação é tão bizarra que, mesmo as assembléias cujo representante da Central era o próprio presidente da CUT Bahia, a filiação foi contestada por este motivo. Veto político nos acordos de pagamento de dívidas Durante o processo de preparação do CONCUT, a Central apresentou propostas de quitação de dívidas para as entidades. Estar adimplente é a principal exigência para participar dos Congressos da CUT. Dentro do prazo e cumprindo as exigências da CUT Nacional, 30 sindicatos de trabalhadores rurais vinculados à FETAG e à CSC apresentaram, no final de março e início de abril, proposta de quitação de dívida, juntamente com os cheques e a autorização de desconto da mensalidade via CONTAG. A tesouraria da CUT Nacional, sem nenhuma explicação e um dia antes do CECUT Bahia, devolveu os cheques, informando surpreendentemente que os acordos foram cancelados porque a documentação chegou com atraso à Central. Quitação graciosa de dívidas de sindicatos ligados à articulação Enquanto sindicatos vinculados à CSC estavam tendo acordos de quitação cancelados pela CUT Nacional, outros sindicatos, ligados à Articulação Sindical, estavam sendo incluídos na lista de entidades aptas a participar do CECUT sem o devido pagamento. Este fato ficou evidente na correspondência trocada na véspera do Congresso, dia 10 de maio de 2006, entre a tesouraria da CUT Bahia e a tesouraria da CUT Nacional, ambas dirigidas pela Articulação Sindical. Na correspondência que veio a público por meio de denúncia da CSC ao plenário do 11º CECUT, integrante da Articulação da Bahia solicita que as pendências financeiras de entidades devedoras ligadas à Articulação Sindical fossem resolvidas conforme "conversa" entre Elizangela, Artur e Ari. Todos dirigentes da CUT nacional e militantes da Articulação. Ari é o tesoureiro em exercício da CUT nacional e Artur, um dos candidatos a presidente nacional da CUT. Os fatos relatados interferiram no resultado do Congresso da CUT Bahia, dando uma "maioria" de 35 votos para Articulação Sindical. Considerando a gravidade dos mesmos e que eles representam sérias ameaças para a CUT no tocante a credibilidade da Central junto à sociedade e junto aos trabalhadores, considerando que o caráter plural, amplo e democrático da CUT é incompatível com as práticas condenáveis denunciadas, demos entrada, juntamente com um grupo de sindicalistas, em recurso junto à CUT Nacional, com o seguinte teor: a-Reconhecimento da filiação de todos os 74 sindicatos vetados pela CUT Nacional, a partir da data da realização das respectivas assembléias.b-Validade dos acordos de quitação da dívida que foram cancelados pela tesouraria nacional.c-Apresentação de recibo bancário de pagamento das dívidas dos sindicatos denunciados pela Corrente Sindical Classista como beneficiados por "acertos" entre os membros da Articulação Sindical, sob pena dos mesmos serem excluídos do colégio eleitoral do 11º CECUT. Eis a lista: Sispec de Camaçari, Sindicato dos Trabalhadores em Alimentação de Barreiras, STR de Coribe, STR de Rio do Antônio, STR de Rodelas, Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Sobradinho, Colônia de Pescadores de Remanso e Sindlimp de Salvador. d-Auditoria nas contas do CONCUT referente ao CECUT/ Bahia.e-Após estas medidas serem tomadas e restabelecimento da correlação de forças real no 11º CECUT/Bahia, a CUT Nacional realizará plenária final do CECUT/Bahia para recompor a direção da Central na Bahia. A classe trabalhadora brasileira já amadureceu o suficiente para se recusar a conviver com essas práticas espúrias que ainda persistem dentro da CUT. Casuismos como estes que estamos denunciando são características do banditismo sindical, que não vê limites na disputa das direções das entidades e enxergam a CUT, e os próprios sindicatos, apenas como aparelhos a serem utilizados em benefício de projetos pessoais ou a serviço de interesses escusos de grupos, que mais se assemelham a um ajuntamento de meliantes do que a grupos de militantes sindicais, interessados no processo de transformação social e na construção de um país sem as desigualdades que somos vítimas.Lançamos um chamamento aos cutistas para que seja rechaçada esta tentativa de trazer para o movimento sindical o lado podre da política tradicional, que tanto tem causado náuseas ao povo brasileiro. O que se trata neste momento é de preservar o caráter plural, amplo e democrático da CUT. Não permitamos que a direção da Central, sob qualquer pretexto, seja parcial e antiética nas disputas internas. Queremos que no CONCUT, e em todos os fóruns e instâncias da Central, prevaleça a representatividade real das forças políticas e que avancemos rumo ao fortalecimento da luta dos trabalhadores, para evitar o retrocesso no país e para criar condições favoráveis a um novo projeto de nação, com desenvolvimento, distribuição de renda e valorização do trabalho.

A noção marxista de povo

Por Augusto Buonicore

Há alguns meses atrás publicamos uma série de artigos sob o título geral de Descobrindo o povo brasileiro. Através deles procuramos apresentar, de maneira sumária, as diversas maneiras que a questão do povo brasileiro foi apreendida pelos principais expoentes da nossa inteligência no início do século XX. Na verdade o nosso esforço se reduziu a resenhar as obras que tiveram maior influência na construção de uma visão sobre o Brasil e seu povo. Entre elas estavam Os Sertões de Euclides da Cunha, Por que me ufano do meu país de Afonso Celso, Retrato do Brasil de Paulo Prado, Populações meridionais do Brasil de Oliveira Vianna, Casa-Grande e Senzala de Gilberto Freyre e Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda.
Estes autores, a partir das teorias em voga na época (o determinismo geográfico, racial, psicológico e cultural), procuraram descobrir a essência do povo brasileiro, o que o diferenciava dos demais povos do mundo. Para alguns ele era tido como, essencialmente, triste (Paulo Prado), para outros um povo de índole alegre (Gilberto Freyre). Uns o viam como cordial (Sérgio Buarque) e lhe outorgava uma índole pacífica e conciliadora (Afonso Celso) e, também, havia aqueles que, pelo contrário, viam nele (o povo brasileiro) apenas, ou fundamentalmente, brutalidade e intolerância.
Apesar das definições contraditórias e, na maioria das vezes, antagônicas, todos estes autores estavam aprisionados a uma mesma problemática (de fundo idealista). Eles partiam sempre de uma questão: o que é o homem brasileiro? Assim o pressuposto era sempre o mesmo: existiria uma essência em geral que faria do brasileiro aquilo que ele é: triste ou alegre, pacífico ou violento.
Mas, naqueles artigos, ficaram de fora as tentativas pioneiras de interpretações do Brasil realizadas pelos intelectuais marxistas. Na década de 1920 e início da década de 1930 as interpretações marxistas ainda davam seus primeiros passos, embora tenham sido produzidas obras significativas como Agrarismo e Industrialismo (Octávio Brandão - 1926), A caminho da revolução operária e camponesa (Leôncio Basbaum – 1934) e o clássico da historiografia marxista brasileira Evolução Política do Brasil (Caio Prado Jr. - 1933). Ainda na primeira metade do século XX, Caio Prado Jr publicaria Formação do Brasil Contemporâneo – colônia (1942), História Econômica do Brasil (1945). Estas obras representaram um salto de qualidade na tentativa de interpretação do Brasil ao introduzirem um vigoroso instrumento analítico: o materialismo-histórico.
Outro grande historiador, contemporâneo de Caio Prado, foi Nelson Werneck Sodré. Entre os marxistas brasileiros, Sodré é o autor da obra mais ampla e abrangente. Ele escreveu sobre as classes sociais, os militares, os comunistas, a imprensa, a geografia, a cultura brasileira etc.etc. Especificamente sobre a formação política, econômica e social brasileira escreveu, entre outros, Formação Histórica do Brasil (1962), Introdução à Revolução Brasileira (1958), A História da Burguesia Brasileira (1964) e Capitalismo e revolução burguesa no Brasil (1990). Outros autores marxistas também se destacariam a partir da década de 1950, como Clóvis Moura, Paula Beiguelman, Fernando Novaes, Ciro Flamarion Cardoso e Jacob Gorender.
Em relação ao debate sobre a definição de povo brasileiro, o que os difere dos demais é que eles não buscaram descobrir um caráter nacional dos brasileiros. Ou seja, não procuraram as supostas características genéticas, psicológicas ou culturais, através das quais pudessem construir uma definição de povo brasileiro.
Para os marxistas o povo brasileiro não seria uma determinação do clima, da raça ou mesmo da cultura trazidas pelas três raças formadoras (portuguesa, africana e indígena). Não existiria nele uma essência geral, a-histórica. A sociedade – e, por conseguinte, o povo brasileiro – seria o resultado do processo complexo e contraditório da nossa formação econômica, político e social. Como esses diversos fatores que compõem uma sociedade estão em constante desenvolvimento, o povo também não pode ser considerado uma realidade estanque.
As contribuições dos marxistas foram, em primeiro lugar, negar a existência de uma essência geral do povo brasileiro – e, por sinal, em qualquer outro povo no mundo; em segundo lugar, constatar que o povo não forma um todo homogêneo e está dividido em classes, frações de classe e categorias sociais em constante disputa. A existência das classes e da luta entre elas impõe dificuldades às teses idealistas sobre o caráter nacional de um povo. Estas tendem pensar o povo de maneira homogênea, sem contradições significativas. É justamente aqui que reside a diferença entre as interpretações burguesa e comunista. Para os marxistas nenhum povo é, essencialmente, alegre ou triste, teórico ou prático, organizado ou desorganizado. E, principalmente, nenhum povo é melhor ou pior do que outro. Embora em determinadas fases históricas possa predominar esta ou aquela característica psicológica, nesta ou naquela classe, fração ou categoria social. Sabemos, por exemplo, que um sentimento de impotência – apatia e desânimo – pode atingir o conjunto das classes populares depois de uma derrota política de envergadura.
A noção de povo em Marx, Engels e Lênin
Veremos agora como os clássicos do marxismo – Marx, Engels e Lênin – definiram o povo. Em primeiro lugar é preciso notar que, de maneira geral, eles buscaram fugir da problemática do caráter nacional.
Digo de maneira geral, pois os dois primeiros autores chegaram, especialmente, durante a juventude a flertar com teses essencialistas e, mesmo na maturidade, em alguns textos, a fazer afirmações que demonstravam a permanência daquelas idéias. Mas acredito que quando se expressam ainda dessa maneira em plena maturidade, eles o fazem de maneira mais ou menos livre, sem qualquer preocupação conceitual, estritamente científica. Por sinal, essas são as passagens mais problemáticas da vasta produção intelectual de Marx e Engels.
O abandono – ou secundarização - da problemática do caráter nacional não se deu devido ao pouco conhecimento desses autores em relação à psicologia, antropologia e sociologia modernas, pois eles eram profundos conhecedores da ciência de seu tempo. A principal razão é que ela era destoante – e entravam em choque – com a nova problemática inaugurada com o materialismo-histórico. Os determinismos, predominantes no final do século XIX, assentados na supervalorização da raça, meio geográfico, dos aspectos culturais e psicológicos, são substituídos pela dinâmica instituída na relação entre forças produtivas e relações de produção, entre infra-estrutura e superestrutura e entre os diversos ramos da superestrutura: ideológico e jurídico-política.
Vejamos, então, como Marx e Engels definiam a noção de povo. No seu famoso Contribuição à Crítica da Economia Política, na passagem que trata especificamente do método, Marx afirma: A população é uma abstração se desprezarmos, por exemplo, as classes que se compõe (...) Assim, se começássemos pela população teríamos uma visão caótica do todo, e através de uma determinação mais precisa, através de uma análise, chegaríamos a conceitos cada vez mais simples; do concreto figurado passaríamos a conceitos mais simples. Partindo daqui, seria necessário caminhar em sentido contrário até chegar finalmente de novo à população, que não seria, desta vez, a representação caótica de um todo, mas uma rica totalidade de determinações e de relações numerosas. O mesmo método que permite construir um conceito mais preciso - e mais rico - de população, permitirá também aos marxistas construir um conceito mais preciso e rico de povo.
No entanto, foi nas chamadas obras históricas que Marx e Engels mais se preocuparam em apresentar uma noção do que seja o povo. Em As lutas de classe em França Marx escreveu: No dia 4 de maio reuniu-se a Assembléia Nacional saída das eleições diretas. O sufrágio universal não possuía o poder mágico que os republicanos da velha-guarda acreditavam que tinha. Em toda a França, pelo menos na maioria dos franceses, viam eles cidadãos com os mesmos interesses, o mesmo discernimento, etc. Era este o seu culto do povo. Em vez deste povo imaginário, as eleições francesas trouxeram à luz do dia o povo real; isto é, os representantes das diferentes classes em que ele se divide.
Poucos anos depois desta vez em O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte, Marx escreveu: o democrata, por representar a pequena burguesia, ou seja, uma classe de transição na qual os interesses de duas classes perdem simultaneamente suas arestas, imagina estar acima dos antagonismos de classes em geral. Os democratas admitem que se defrontam com uma classe privilegiada mas eles, com todo o resto da nação, constituem o povo. O que eles representam é o direito do povo; o que interessa a eles é o interesse do povo. Por isso, quando um conflito está iminente, não precisam analisar os interesses e as posições das diferentes classes. (...) Tem apenas que dar o sinal e o povo, com todos os seus inexauríveis recursos, cairá sobre os opressores. Mas se na prática seus interesses mostram-se sem interesse e sua potência, impotência, então ou a culpa cabe aos sofistas perniciosos, que dividem o povo indivisível em diferentes campos hostis, ou o exército estava por demais embrutecido e cego para compreender que os puros objetivos da democracia são o que há de melhor para ele, ou tudo fracassou devido a um detalhe na execução, ou então um imprevisto estragou desta vez a partida.
Embora em algumas passagens a noção de povo se confunda com o conceito de população, no geral, são tratados como coisas distintas. População é o conjunto de habitantes de um país e, assim, congrega todas às classes sem exceção. Povo representa apenas parte da população – a maior parte – mas também se divide em classes.
Então, quais as classes que compunham o povo, segundo Marx e Engels? Esta pergunta não pode ser respondida de maneira abstrata, fora da história de luta de classes. A definição de povo, segundo eles, dependeria da época e do lugar. Engels, escrevendo na Nova Gazeta Renana e em meio da revolução alemã de 1848-1849, afirmaria: A grande burguesia, anti-revolucionária desde o começo, fez uma aliança defensiva com a reação por temer o povo, isto é, os operários e a burguesia democrática. Quando fala em burguesia democrática- em contraposição a grande burguesia - possivelmente esteja se referindo aos camponeses proprietários, a pequena e a média burguesia urbana. Este era o povo alemão em 1848.
Talvez, alguns meses antes, Marx e Engels não recusassem incluir parte da grande burguesia na sua noção de povo alemão. A burguesia prussiana, escreveu Marx em A burguesia e a contra-revolução, não era, como a burguesia francesa de 1789, a classe que (...) encarnava toda sociedade moderna. Ela havia decaído ao nível de uma espécie de casta, tanto hostil à Coroa como ao povo, querelando contra ambos (....) estava disposta desde o início a trair o povo e ao compromisso com o representante coroado da velha sociedade, pois ela mesma pertencia à velha sociedade; representando não os interesses de uma sociedade nova contra uma sociedade velha, mas interesses renovados no interior de uma sociedade envelhecida. A burguesia entrou na revolução ainda pertencendo ao povo alemão, mas em algum momento ela se separou dele e se transformou em não-povo e depois em anti-povo.
Mais de 50 anos depois um outro revolucionário marxista seguiria na mesma trilha aberta por Marx e Engels e se utilizaria da mesma noção. A social democracia lutou e luta, com todo o direito, contra o abuso democrático-burguês da palavra ‘povo’. Exige que com essa palavra não seja encoberta a incompreensão dos antagonismos de classe no seio do povo (...) Porém, divide o povo em classes não com o objetivo que a classe de vanguarda se encerre em si mesma, se limite com uma perspectiva estreita (...) divide o povo em classes para que a classe de vanguarda (...) lute com maior energia, com maior entusiasmo, pela causa de todo o povo, e à frente do mesmo, escreveu Lênin em As duas táticas da social-democracia na Revolução Democrática.
Continuou ele: Vejamos agora quais as classes que podiam e deviam, na opinião de Marx, realizar esta tarefa – aplicar na prática, consequentemente, o princípio da soberania do povo, e repelir os ataques da contra-revolução. Marx fala do povo. Porém nós sabemos que ele sempre lutou impiedosamente contra a ilusão pequeno-burguesa da unidade do povo, da ausência da luta de classes no seio do povo. Ao empregar a palavra povo, Marx não ocultava sob esta palavra a diferença de classes; o que ele fazia era unificar determinados elementos capazes de levar a revolução até o fim. Então a noção de povo estava ligada diretamente às forças sociais interessadas em realizar as tarefas da revolução democrático-burguesa num primeiro momento e socialista num segundo.
Por fim, fiquemos com uma definição do líder comunista chinês Mao Tse-Tung, exposta no seu clássico Justa solução das contradições no seio do povo. O conceito de povo, escreveu ele, toma sentidos diferentes conforme os países e períodos distintos da história de cada país. Tomemos o nosso próprio país como exemplo. Durante a Guerra de Resistência contra o Japão, todas as classes, todas as camadas e todos os grupos sociais que participaram na luta de resistência contra a agressão japonesa pertenciam ao povo, enquanto (...) os chineses traidores à sua própria pátria e os elementos pró-japoneses pertenciam a categoria de inimigos do povo (...) Na etapa atual, período de construção do socialismo, todas as classes, camadas e grupos sociais entram na categoria de povo, enquanto que todas as forças e grupos sociais que resistem à revolução socialista e hostilizam ou sabotam a edificação socialista são os inimigos do povo.
O dicionário de filosofia, organizado pelos soviéticos Rosental e Iudin, afirma que num sentido rigorosamente científico povo seria uma comunidade de pessoas, que se modifica historicamente, formada pela parte da população, camadas e classes, que pela sua situação objetiva estão em condições de participar conjuntamente na resolução dos problemas concernentes ao desenvolvimento revolucionário, progressista, de um dado país, num dado período. Continua: Constitui um critério fundamentalíssimo para se reconhecer se um determinado grupo da população faz parte do povo, ver o seu interesse e capacidade, objetivamente condicionado, para participar das tarefas do progresso. No decurso do desenvolvimento social (...) mudam as tarefas objetivas da revolução (...) pelo que também se modifica, inevitavelmente, a composição social das camadas que, em dada fase, representam o povo. A diferenciação entre povo e população apareceria com a divisão da sociedade em classes e desapareceria com ela. Só quando acaba a exploração do homem pelo homem, na sociedade socialista, de novo o conceito de povo abrange toda a população.
O historiador Nelson Werneck Sodré incorporaria esta noção em seus trabalhos e buscaria, através dela, entender mais e melhor a história de nosso país. O seu ensaio intitulado Quem é o povo no Brasil?, no qual expõe de maneira mais sistemática (e didática) sua posição, foi publicado pela primeira vez em 1962 na coleção Cadernos do Povo Brasileiro da Editora Civilização Brasileira.
No próximo artigo veremos como os marxistas brasileiros, especialmente Sodré e Caio Prado, buscaram as chaves para desvendar o problema da formação do povo brasileiro e as virtudes e vicissitudes dessas tentativas pioneiras.
no seio do povo

O muro da vergonha nos EUA

Por Altamiro Borges

Em mais uma iniciativa de natureza fascista, o Senado dos EUA aprovou nesta quarta-feira, 27 de maio, a construção de um muro-triplo de 595 quilômetros na fronteira com o México para impedir o ingresso na “terra da liberdade” (baita ironia!!!) dos imigrantes das nações saqueadas pelo próprio imperialismo.
Com folgada maioria, de 83 contra 16 votos, também foi acatada a emenda de dois senadores republicanos que exclui qualquer anistia a milhares de “imigrantes ilegais” residentes no país e prevê a criação de barreiras para veículos em outros 805 quilômetros na divisa entre os países. Ao mesmo tempo, foram rejeitados os projetos que propunham a limitação do trabalho precarizado dos estrangeiros. Escravos, sim, mas ilegais!
Estas medidas revelam a brutal regressão autoritária em curso no país e desmascaram o discurso da mídia sobre os valores da democracia liberal nos EUA. Dois dias antes, o presidente-terrorista George W. Bush já havia anunciado o envio de 6 mil soldados para a fronteira com o México. A decisão foi encarada como uma “declaração de guerra” pelos setores organizados dos imigrantes e também por lideranças mexicanas, o que obrigou o mentiroso contumaz Baby Bush a utilizar a rede nacional de televisão para negar o óbvio: a “militarização da fronteira”. Estes fatos indicam que a questão migratória se tornou um barril de pólvora nos EUA e que o recurso à violência, com base na famigerada “segurança nacional”, agora é oficial!
Inferno dos migrantes
Segundo estudos de Luiz Bassegio e Luciane Udovic, integrantes da Secretaria Continental do Grito dos Excluídos, dos 87 milhões de migrantes nas Américas e Caribe, 57 milhões residem atualmente nos EUA. A vida deste estrangeiro, principalmente dos 12 milhões que não estão legalizados, é um inferno em todos os estágios: ao tentar ingressar no “primeiro mundo”, iludido com a promessa do paraíso, ele é vítima de perseguições e morte; ao ser obrigado a trabalhar com salários aviltantes, em condições degradantes e sem qualquer proteção social; e ao ser preso e deportado como criminoso. Este drama social já martiriza mais de um milhão de brasileiros, que deixaram o país em busca da falsa miragem de um futuro melhor! A tentativa de ingresso nos EUA é o estágio mais perigoso. O “muro da vergonha”, também chamado de “muro do império”, coloca em risco a vida de milhares de desesperados dos países dependentes. Na parte mexicana, os imigrantes são espoliados por máfias criminosas que cobram até US$ 12 mil para a travessia ilegal. Eles ficam semanas dormindo em barracas de lona, sem qualquer higiene e com frágil alimentação. Já no território estadunidense, eles são perseguidos por 11 mil policiais – e agora por mais 6 mil soldados. Milhares são presos e deportados. Só em abril do ano passado, 4.802 brasileiros foram detidos – na média de 160 ao dia. Mais grave ainda é a ação de empresas paramilitares, como a racista Gatekeeper que presta assessoria para fazendeiros e ricaços interessados em caçar e matar imigrantes num jogo macabro!
Desde janeiro de 2001, quando o presidente mexicano Vicente Fox, ex-executivo da Coca-Cola, e George Bush assinaram um acordo migratório, mais de 2 mil pessoas foram mortas nesta divisa. No ano passado, foram 441 mortes, sendo 15% mulheres. A mídia burguesa, que acusou o famoso Muro de Berlim de ser responsável pela morte de 800 pessoas em 30 anos, pouco fala sobre o “muro da vergonha” que separa o México dos EUA. Pelo projeto aprovado no Senado, o muro expandindo terá detectores de movimentos e iluminação noturna. Seu custo será de US$ 1 milhão de dólares por quilômetro e percorrerá os Estados da Califórnia, Arizona, Novo México e Texas. Como alertou o bispo mexicano Gregório Rosa, ele reforçará a “divisão entre o norte e o sul, entre ricos e pobres. É uma declaração de desprezo a América Latina”.
O estágio seguinte, dos que conseguem escapar do cerco, também é deprimente. Como relata a jornalista Elaine Tavares, “boa parte dessa gente que chegou no país vive como ‘ilegal’. São ninguém, pessoas sem documento e sem cidadania. Até hoje têm conseguido viver em empregos subalternos, passando as piores privações. Por serem ‘ilegais’, os empregadores se acham no direito de explorar ao máximo e eles vão se submetendo”. Além do salário aviltante e do trabalho mais degradante e pesado, o migrante também não tem direito à rede pública de hospitais e escolas. E agora, segundo a jornalista, a tendência é que se agrave também o terceiro estágio, da expulsão humilhante, fechando completamente o cerco contra os migrantes.
“O governo pretende criminalizar a situação de pessoas ilegais e punir quem as emprega. Outra idéia é criar o emprego temporário para o "trabalhador hóspede", válido para os empregos que os estadunidenses não quiserem. A proposta é considerada aviltante e muito propícia para os empresários locais. Terão mão-de-obra barata e não correrão o risco de ter ‘essa gente’ por muito tempo, visto que passado o prazo, eles serão obrigados a voltar para o país de origem”. Ainda segundo a jornalista, “o saco de maldades não fica por aí. Dentre as propostas que pipocam no Congresso está uma que é de espetacular sordidez: cobrar dos próprios imigrantes uma taxa para fazer um muro ainda mais seguro do que o que já existe na fronteira. Também as entidades de direitos humanos ou que prestem ajuda a imigrantes sofrerão as penas da lei”.
Barril de pólvora
A violência contra os imigrantes, porém, tem gerado maior conscientização e resistência das vítimas. Nas comemorações deste 1o de Maio, mais de um milhão e meio de pessoas saíram às ruas em várias cidades dos EUA para protestar contra o endurecimento da legislação migratória e para exigir os direitos sociais e trabalhistas. O protesto, denominado de “um dia sem imigrantes”, revelou a força destes trabalhadores. Alguns símbolos do império, como a McDonald’s e a rede Wall Mart, foram boicotados. A própria mídia burguesa alertou para o risco da paralisação da economia, que depende hoje de milhões de migrantes. Ela constatou que os EUA estão diante de um barril de pólvora, “que pode explodir a qualquer momento”. Para Luiz Bassegio e Luciane Udovic, “fica cada vez mais evidente que não será com muros, fechamento de fronteiras, policiais, cães ou com legislações restritivas que o problema da migração será resolvido. A migração não é um caso de polícia; é sim uma questão social, de justiça. É preciso atacar as causas que provocam tantos e volumosos êxodos. A causa maior é ‘a globalização que não distribui as riquezas; que globaliza os mercados, mas não é solidária; que elimina barreiras comerciais, mas impede a circulação das pessoas; que defende o livre mercado como um direito, mas dificulta o acesso aos direitos básicos’”.

maio 17, 2006

PSol: eleitoralismo e esquerdismo

Por Altamiro Borges

No final do ano passado, o conceituado sociólogo Emir Sader caracterizou o recém-legalizado Partido do Socialismo e Liberdade (PSOL) como “uma estranha combinação de ultra-esquerdismo e eleitoralismo” e anteviu um futuro turbulento para esta legenda. Seu prognóstico parece se confirmar quando se observam os intensos debates preparatórios do primeiro congresso do partido, previsto para maio.
Num pólo, alguns setores desta organização híbrida – que já agrega mais de dez grupos no seu interior – articulam alianças para que o partido se viabilize eleitoralmente. No outro, forças que se autoproclamam de revolucionárias rechaçam qualquer ampliação de alianças e acusam os seus proponentes de ferirem a democracia interna.
É certo que as negociações de setores do PSOL para costurar alianças eleitorais não têm se dado de forma transparente. Não há qualquer posição oficial da direção do partido sobre o tema. No Congresso Nacional, porém, estas conversações de bastidores já se tornaram motivo de comentários irônicos. A própria mídia hegemônica especula sobre elas. Um artigo do Correio Braziliense (09/02/06) antecipou que “o PDT e o PSOL estão perto de fechar um acordo para apresentar um candidato único à Presidência da República. A aproximação entre as duas legendas é feita às claras. A reunião de ontem que discutiu o assunto aconteceu no cafezinho do Senado. ‘Não temos nada a esconder’, disse o deputado federal João Fontes (PDT-SE)”.
Ainda segundo a mídia, a senadora Heloísa Helena, pré-candidata à sucessão e vitrine eleitoral do PSOL, participa ativamente destas articulações – apesar de suas negativas. Outra liderança que defende alianças é o deputado Ivan Valente, dirigente da Ação Popular Socialista, que recentemente aderiu ao PSOL. “A aliança mais importante que poderíamos fazer, do ponto de vista do tempo de televisão e da estruturação partidária, seria com o PDT”, argumenta. Há até vozes que pregam coligações mais heterodoxas. Segundo João Alfredo, outro parlamentar eleito pelo PT que bandeou de partido, “o PSOL atualmente negocia com setores antipetistas do PDT, PPS, PSB e PV com o objetivo de construir uma terceira via pela esquerda”.

Ambiente esquizofrênico

Diante das negociações em curso, que podem não vingar, algumas correntes internas do PSOL estão com os nervos a flor da pele. Várias delas – o Movimento de Esquerda Socialista (MES), da deputada Luciana Genro, a Corrente Socialista dos Trabalhadores (CST), do deputado Babá, o Movimento Terra, Trabalho e Liberdade (MTL) e o Socialismo e Liberdade (SOL) – têm a mesma matriz teórica do PSTU e costumam taxar qualquer política de alianças de traição. Outros setores abandonaram recentemente o PT, desiludidos com os rumos do governo Lula, e tentam se diferenciar ao máximo de seu ex-partido. Acusam a política de alianças como culpada pelas limitações do governo, que teria abandonado a perspectiva socialista.
Neste clima meio esquizofrênico, o tiroteio é intenso. Em fevereiro passado, o diretório estadual do PSOL do Pará divulgou documento no qual se disse “surpreendido pelas notas na imprensa sobre as negociações avançadas entre PSOL e PDT”. Hegemonizado pela CST, este comitê rechaça qualquer aliança e acusa o PDT de ser liderado por “um dos maiores latifundiários do sul do Pará”. Mas o problema, segundo a irada direção, não é local. “Estado por estado, essa coligação só pode significar desmoralização e retrocesso do partido. Não queremos nem imaginar o que significaria para São Paulo, berço da Força Sindical e terra do Paulinho [presidente do PDT-SP]... Até a esquerda petista defensora da CUT teria chance de rir da gente”.
Menos incisivo, Pedro Ruas, dirigente do MES, também rejeita as propostas de coligação. “No caldeirão de mediocridade da política nacional, o PDT é somente mais uma sigla. Sem propostas concretas, sem projetos fora das eleições, ele consegue ser de tudo um pouco (até em virtudes), menos verdadeiramente trabalhista. Ora, não sendo trabalhista, ele não é nada. Não é admissível imaginar alianças que somente busquem dividendos eleitorais, ainda mais com o risco de descaracterização do PSOL. Dessa forma, para o nosso partido, uma aliança com o PDT pouco acrescentaria e muito prejudicaria”.
No mesmo rumo, a corrente formada pelo economista Plínio de Arruda Sampaio Jr e pelo dirigente cutista Jorge Martins, entre outros, defende a construção de uma frente exclusiva de esquerda. No caso do PSTU, ela ainda faz ressalvas “devido à postura nada fraterna e sectária adotada por este partido”. A sua rejeição maior, porém, é aos partidos “que reproduzem a decadente política burguesa, como PV, PDT e PPS. Não é coerente a aliança com partidos que num estado estão na base do governo Lula e em outros na base dos governos tucanos (PPS e PV), ou de partidos que aceitam camadas inteiras do pior da burocracia sindical (Força Sindical) e no Congresso fazem blocos políticos com o PSDB e o PFL (como é o caso do PDT)”.
Risco de retrocessoA bronca de várias correntes internas, porém, não se restringe à política de aliança. Para agravar a cizânia, alguns setores criticam sua diluição programática e o crescente desrespeito à democracia. Um coletivo de militantes dos grupos Socialismo Revolucionário (SR) e MTL chega a advertir para o “risco de retrocesso no PSOL... O impasse e a paralisia da direção nacional, a debilidade das suas instâncias, a crise aberta na definição dos critérios para o congresso e o debate mal feito sobre eleições, alianças e até mesmo sobre a candidatura presidencial são sinais claros de um projeto ainda incompleto, sujeito a todo tipo de pressão”. O temor é que o “PSOL se transforme numa réplica do PT, num partido que se guia pela lógica eleitoral”.Ainda segundo este texto, bastante elucidativo, “o risco de recuo se torna ainda mais perigoso na medida em que já existem elementos de retrocesso na organização partidária e nas relações entre correntes e entre instâncias... Há uma ênfase na destrutiva disputa fracional por espaço e controle do partido. Existe o risco concreto de um processo de ‘petização’ da estrutura partidária na medida em que a prioridade da disputa numérica leva ao inchaço artificial dos núcleos e ‘militantes’... Conhecemos a experiência do PT no início de sua degeneração e sabemos onde vai dar. Passa a ser um partido de núcleos e militantes ativos somente às vésperas de congresso, que funcionam como apoiadores eleitorais organizados em torno de mandatos”.As tensões internas no PSOL já apresentam alguns episódios curiosos – que maculam a imagem vendida de que este seria um partido “puro e diferente”. A tal “disputa fracional” é visível. O recente ingresso de correntes que abandonaram o PT após a eleição para sua direção nacional só se deu com a introdução no estatuto da estranha “filiação democrática”, que permite que os novos filiados desrespeitem as orientações partidárias. A própria adesão da APS exigiu cansativas rodadas de negociação. Segundo o relato de João Machado, membro da executiva nacional, chegou a se propor que ela só fosse aceita após o I Congresso, garantindo que “os militantes da APS tenham deveres e direitos iguais aos demais militantes do PSOL”.Já o seu “inchaço artificial” tem gerado algumas cenas constrangedoras. Vale reproduzir um longo trecho da reportagem da revista IstoÉ (01/03/06): “O polêmico PSOL está em crise. De crescimento. O estrelato da senadora Heloísa Helena na CPI dos Correios atraiu para a legenda 16 mil filiações, abriu a chance de uma boa performance na eleição presidencial, mas, em compensação, atraiu políticos não exatamente comprometidos com a luta ‘contra o capital financeiro-imperialista’. ‘Esse negócio de esquerda ou direita é modismo’, diz o ex-tucano Edson Ferreira de Brito, presidente do diretório de Sidrolândia (MS). ‘Não há problemas em recebermos tucanos ou pefelistas’, ecoa o presidente regional do PSOL no Estado”.“A divisão entre puristas, que defendem um ferrolho ideológico, e os liberais deve render uma boa briga. Todo o diretório do PSOL na Bahia foi destituído porque os chefes da legenda descobriram o passado de seus integrantes. ‘Eles haviam sido candidatos pela direita tradicional’, aponta Gustavo Mercês... ‘O PSOL tem um charme solar para atrair aventureiros’, acredita o vice-presidente do partido no Rio. Ali, a aguerrida ex-vereadora do PDT, Regina Gordilho, teve a sua filiação negada. ‘Não concordo com o veto ideológico fundamentalista’, critica o deputado Chico Alencar. A própria pré-candidata a presidente abre uma janela para a massificação. ‘Não são aceitos os capitalistas, vigaristas, racistas, homofóbicos e outros que representam a minoria do povo brasileiro, mas a grande maioria eu aceito’, sustenta Heloísa Helena”.Fragil unidadeDiante destas flagrantes contradições, crescem as dúvidas sobre o futuro deste partido. O PSTU, que tenta se perfilar com uma carapuça ainda mais esquerdista, procura tirar a sua casquinha do concorrente. Numa jogada arriscada, ele formalizou a proposta da “constituição de uma frente de esquerda” com o PSOL e o PCB. Ele até aceita que Heloísa Helena encabece a chapa presidencial, mas reivindica a vaga da vice. Ao mesmo tempo, o PSTU alfineta ao exigir que a frente “tenha caráter classista, sem a presença de partidos burgueses, como o PDT”, e critica o pré-lançamento de candidatos do PSOL nos estados. “Não há como constituir uma frente de esquerda nestas condições. Não haverá a simples adesão do PSTU”, esbraveja.Até agora esta tática arriscada ainda não rendeu frutos. Após ter sido sangrado pelo concorrente, o PSTU parece querer dar o troco. Tanto que alardeou uma carta de dois desfiliados do PSOL no Rio de Janeiro, que ataca as distorções do partido. “Eles começaram com a presença de Heloísa Helena no encontro do PDT, onde elogiou figuras como Carlos Luppi, afirmando que ‘aqui no PDT estão os que não se dobram, os que não se curvam, os que não se ajoelham covardemente’. Depois veio a aceitação de figuras como Maninha e Ivan Valente, que cumpriram o papel de segurar a base mais tempo no PT, e de Chico Alencar, que votou a favor da reforma da previdência. Por último, o senador Geraldo Mesquita e o escândalo do ‘mensalinho’. Estes equívocos partem da opção política equivocada de priorizar o parlamento burguês”. Como se nota, a confusão no interior do recém-nascido PSOL é gigantesca. Enquanto alguns grupos mais voluntaristas apostam na iminente falência do “ciclo do PT, na derrubada do governo Lula e no processo de ruptura anticapitalista”, sonhando com a revolução socialista na próxima esquina, outros setores mais pragmáticos só pensam nos trunfos eleitorais advindos da popularidade da sua candidata à Presidência da República. O programa do partido é genérico, bastante centrado na difusa bandeira da “ética na política”; a sua estratégia tem um forte componente eleitoral; e a sua organização é totalmente difusa – é mais uma frente híbrida de inúmeras tendências e interesses do que propriamente um partido político. Na prática, o que ainda garante a sua aparente unidade é a oposição frontal ao governo Lula e a rancorosa aversão ao PT – o que muitas vezes produz cenas televisivas grotescas de conchavos com os expoentes da direita neoliberal no Congresso Nacional. Durante a disputa eleitoral, com uma campanha que priorizará o ataque “pela esquerda” ao governo Lula, o PSOL terá generosa exposição na mídia e poderá até sonhar com importantes rendimentos eleitorais. Mas, passada a refrega de outubro, o que sobrará deste partido que tem gerado expectativas numa parcela do movimento social organizado? Será uma nova desilusão e frustração, que teria contribuído apenas para reforçar o sectarismo e a fragmentação no campo popular?

Dilemas da CUT e racha da Conlutas

Por Altamiro Borges

Somente os sectários podem preferir uma maioria segura numa confederação sindical pequena e isolada em vez do trabalho de oposição numa organização ampla e realmente massiva”. Leon Trotsky.

Nos próximos dias, o sindicalismo brasileiro estará envolvido em intensos debates. De 5 a 7 de maio, em Sumaré (SP), ocorre o primeiro congresso da Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas), que oficializará um novo racha sindical com a criação de mais uma central no país. Hegemonizada pelo PSTU, a Conlutas tem como marca a oposição frontal ao governo Lula e à CUT e adota uma forma organizativa híbrida. Na seqüência, de 6 a 9 de junho, ocorrerá o 9o Congresso Nacional da CUT, a maior central sindical do país, com 3.489 entidades filiadas e 22.533.798 trabalhadores na base. Ele debaterá as complexas relações com o governo Lula e os desafios para retomar o poder de mobilização e de intervenção política na sociedade.

Sindicalismo em crise

Em níveis diferenciados, ambos os congressos expressam as dificuldades do sindicalismo na fase recente. Não é possível entender seus dilemas atuais sem realizar uma análise mais totalizante da crise que atinge o movimento sindical nacional e mundial. No caso brasileiro, após um longo período de silêncio imposto pela ditadura militar, o sindicalismo viveu a sua fase de ouro nos anos 80. Enquanto no mundo inteiro ele afundava na crise, no Brasil o sindicalismo batia recordes de greves, renovava suas direções, retomava a ação intersindical, despontava no setor público e desabrochava no meio rural. Somente outros dois países viveram o mesmo fenômeno – África do Sul, na luta contra o apartheid, e Coréia do Sul, no combate à ditadura. Houve também o caso da Polônia, mas por razões distintas que só o Vaticano consegue explicar.
Na década de 90, porém, o sindicalismo brasileiro sofreu uma brutal reversão. Se antes ele estava em alta, agora também entrava em crise. A vida do sindicalista virou um martírio. Houve queda de sindicalização, as assembléias se esvaziaram, as cisões aumentaram e as pesquisas detectaram sua perda de credibilidade. Vários fatores, objetivos e subjetivos, explicam o declínio. Não dá, como alegam certas visões simplistas, para culpar apenas a direção sindical pela crise. O uso mecânico da tese de Leon Trotsky, no seu famoso “Programa de transição”, de que as condições para a revolução “estão maduras” e de que ela só não vinga devido à “traição da direção”, não se sustenta. Do contrario, por que os “revolucionários” não empolgam este processo ascendente, não são exemplos de combatividade e também são vítimas de várias distorções?
Entre os fatores objetivos que acuaram o sindicalismo, três se destacam. A crise estrutural do capitalismo e a explosão do desemprego dificultam a vida dos sindicatos, reduzindo o seu poder de barganha. O outro fator dificultador foi o remédio usado pelo capital para resolver sua crise – o neoliberalismo. Além de não obter melhorias, o trabalhador sente regredir seus direitos. O sindicato tem mais dificuldade para resistir e o seu papel é questionado. Por último, ocorreram mudanças nas empresas com a reestruturação produtiva. As novas tecnologias eliminam o trabalho vivo. Já as técnicas gerenciais disputam a alma do trabalhador, que vira um “colaborador”. O sindicato é visto como um agente desagregador da “família”. Em síntese, as mudanças no sistema capitalista e no mundo do trabalho afetam a materialidade e subjetividade da classe.
Estes fatores objetivos jogaram os trabalhadores na defensiva, independentemente de qual a tendência que dirige o sindicato. Para piorar, eles tiveram reflexo e agravaram as limitações subjetivas das direções. Nas entidades de base, houve o reforço das visões economicista, corporativista e aparelhista. O sindicato corre atrás do prejuízo, sem adotar uma visão mais estratégica. Volta-se para o imediato, para os efeitos e não para as causas; também se volta para dentro, perdendo o referencial de classe. Como o cobertor fica curto, inclusive com a perda de receitas, surge com força o aparelhismo e, mesmo, as degenerações. Diretorias gastam energia e tempo na discussão sobre liberações, celular e carro. Muitos sindicalistas se afastam da base e perdem a perspectiva de transformação da sociedade; fazem da entidade uma carreira profissional!
A crise também afeta duramente as centrais – ainda mais num país aonde não há tradição de sindicalismo horizontal, aonde a repressão sempre proibiu a ação intersindical. Se o ascenso dos anos 80 viu despontar a CUT, os anos 90 vêem aparecer a Força Sindical, com a sua concepção pragmática. A direita neoliberal, hegemônica neste período, investiu pesado, inclusive financeiramente, nesta quinta-coluna infiltrada entre os trabalhadores. Mesmo a CUT sofreu os abalos. Ela não se converte ao neoliberalismo e até lidera certa resistência. Mas, diante da dificuldade de mobilização, ela passa a pregar um sindicalismo menos reativo, mais propositivo, mais negocial, um sindicalismo cidadão. As polêmicas no seu interior se aguçam!
A vitória de Lula, um dos fundadores da CUT, até criou a expectativa de que a crise do sindicalismo seria superada. Mas se antes ela já era grave, agora ficou mais complexa. Soma-se à crise estrutural, uma crise teórica. O sindicalismo tende aos extremos. Uma parcela avalia que “a classe operária chegou ao paraíso” e adota uma postura de passividade acrítica diante do governo. Alguns dirigentes, mais adesistas, ficam embasbacados com o “poder”. No outro extremo, um segmento se decepciona com Lula, que não instituiu o socialismo por decreto, e parte para a oposição frontal. O voluntarismo esquerdista não leva em conta a correlação de forças nem a própria natureza híbrida do governo. A complexa relação entre sindicatos e governos oriundos das lutas sociais, que já havia gerado polêmicas entre Lênin e Trotsky, volta à cena!

Equívocos da Conlutas

É neste contexto, ainda adverso, que acontecem os congressos da Conlutas e da CUT. Quanto à iniciativa liderada pelo PSTU, ela é extremamente prejudicial às lutas dos trabalhadores. Chega a ser irresponsável! Ela parte de um diagnóstico equivocado do atual estágio do sindicalismo para justificar a divisão da CUT. Insiste na tese de que a crise atual deriva da “traição da direção”, como se os sindicatos comandados pelo PSTU fossem exemplos de luta e organização – e não aparelhos, muitos vezes, de minorias ativas. Insiste ainda em apresentar a CUT como algo homogêneo, impermeável à mudança. Desconhece as contradições desta central que reúne o que há de mais dinâmico no sindicalismo e que agrega várias correntes internas.
Ainda no tocante ao diagnóstico, os mentores da Conlutas esbanjam um “otimismo voluntarista” sobre o iminente ascenso da luta dos trabalhadores, a catástrofe do governo Lula e a falência da CUT. José Maria de Almeida, principal líder desta iniciativa, chegou a afirmar recentemente que “a CUT morreu”. Os mais tresloucados difundem que esta central “perdeu dezenas de filiados” e que a Conlutas cresce sem parar – é um fenômeno! Só não falam que, na última fase, a CUT perdeu 54 entidades, mas conquistou a filiação de outras 260. Também omitem que algumas correntes refratárias à CUT, alojadas no PSOL, não pretendem aderir à Conlutas. Críticas do sectarismo e do aparelhismo do PSTU, elas falam em fortalecer a chamada Assembléia Nacional Popular de Esquerda (ANPE). Já o PCB deseja criar a sua própria intersindical!
Se as premissas são equivocadas, piores ainda são seus efeitos. A iniciativa do PSTU estimula a confusão entre os trabalhadores num dos momentos mais delicados da política nacional, quando a direita neoliberal prepara a sua revanche. Quando a mídia investe contra o governo Lula e tenta estigmatizar a CUT, UNE e MST, criticando os “subsídios estatais”, a estridente “oposição de esquerda” acaba servindo aos interesses da direita. A iniciativa também joga na divisão dos trabalhadores. Se a CUT é pelega, a UNE é governista e o MST é vacilante, por que não construir entidades paralelas em todos os cantos? Esta cisão começa nas cúpulas, mas logo pode alcançar às bases, destruindo o caráter de frente única das entidades de massas.
Além de confundir e dividir, a saída da CUT de lideranças combativas presta um inestimável serviço aos que pretendem desvirtuar o papel desta central, transformando-a numa entidade burocrática e governista. Ao invés de reforçar a pluralidade e mesmo as criticas nesta central, acaba piorando a correlação de forças no seu interior. “À burocracia sindical não se podia fazer um favor maior”, já alertara Leon Trotsky. Por último, esta postura pode representar um isolamento ainda maior de certas correntes, fortalecendo o seu auto-exílio sectário. “O auto-isolamento capitulador dos sindicatos de massas equivale a uma traição à revolução”, disse o mesmo Trotsky. O PSTU parece que não aprende com seus próprios erros históricos.
Este partido chegou a festejar a débâcle do socialismo no Leste Europeu imaginando que seria a aurora do trotskismo mundial – quando, na prática, ela representou a restauração capitalista naqueles países. Diante das dificuldades do PT, ele também apostou que seria a alternativa das esquerdas no Brasil. Ao final, foi excluído da formação do PSOL, perdeu vários dos seus quadros e viu-se na triste condição de solicitar a vaga de vice na chapa presidencial de Heloísa Helena. Agora, com a recusa desta proposta, o que fará o isolado PSTU? Será que os dirigentes do PSOL, que optaram por “um assessor do PMDB” na vice (como acusa o jornal do PSTU), terão espaço na Conlutas? Como será a convivência entre os “revolucionários e os reformistas” nesta nova central, tão pura e tão partidarizada?

maio 16, 2006

Os pobres contra os miseráveis

Por Moisés Diniz

O Brasil está enfrentando um debate quase no mesmo nível que fazem os norte-americanos sobre a guerra no Iraque. É que o presidente indígena da Bolívia nacionalizou o gás e o petróleo de seu país e provocou a ira das transnacionais. O problema é que uma delas, a maior delas, é a nossa gloriosa Petrobrás.
Gloriosa no nome e na feição, porque, de resto, já está sob controle de outras mãos. Há muito tempo! A Petrobrás foi ‘privatizada’ na gestão FHC, ficando apenas 32% do seu capital social nas mãos do estado brasileiro. A gente finge que ela é nossa, apenas porque temos a maioria dos votos.
Foi uma plástica tão bem feita que, até hoje, o povo brasileiro pensa que é dono da Petrobrás. Companhias norte-americanas controlam cerca de 40% do capital da empresa que fez Getúlio Vargas e Lula sujarem as mãos de petróleo. Outra fatia gorda fica com empresários brasileiros. É como a dama que dorme em casa e se prostitui durante o dia. Uma mágica tucana que nos dá o ‘controle’ do capital votante e entrega às multinacionais o capital social, aquele que dá lucro.
Aqui reside a grande tragédia. Como o estado brasileiro detém o controle ‘político’ e administrativo da Petrobrás, o contribuinte terá que pagar os custos de qualquer prejuízo da empresa. É que os empresários, estrangeiros e brasileiros, que detêm 68% do capital da empresa, não discutem prejuízos, só lucros. É aqui que entra a tragédia boliviana.
Um país miseravelmente pobre, a Bolívia não passava, até 1º de maio de 2006, de um mero garimpo de gás e petróleo. Multinacionais como Repsol, Total, Amaco, Enron e Petrobrás saqueavam a Bolívia, como as multinacionais norte-americanas saqueiam o Brasil, a África e o Oriente Médio. Duro de ouvir? A Petrobrás, na Bolívia, não passa de uma multinacional.
Nós, que passamos tantas décadas dissertando e reclamando da brutalidade das multinacionais, somos agora os algozes. E o que faz a Petrobrás na Bolívia nada difere do que fazem todas as multinacionais ao redor do mundo. O mesmo discurso da mídia, que argumenta os investimentos realizados pela Petrobrás na Bolívia, é o mesmo utilizado por todas as multinacionais.
A Bolívia está na 114ª posição do IDH, tem um PIB de apenas US$ 22,3 bilhões, exatamente 22 vezes menor do que o PIB do estado de São Paulo. Uma renda 'per capita' anual de US$ 2,6 mil e 64% da população abaixo da linha da pobreza. Para se ter idéia da penúria, apenas os US$ 1,3 bilhões de investimentos da Petrobrás na Bolívia representam 18% do PIB daquele país.
O dramático é que os seus 8,8 milhões de habitantes estão em cima de um mar de riqueza, controlada e apropriada por algumas multinacionais. Repsol (espanhola), Total (francesa), British Gas e British Petroleum (britânicas), Petrobras (brasileira), Enron (estadunidense), Shell (holandês-britânica). Elas controlam a exploração de petróleo e gás, num valor de 100 bilhões de dólares.
Esta é a tragédia! O valor desses recursos naturais, 100 bilhões de dólares, corresponde a 12 vezes o PIB da Bolívia. 75% do PIB da Bolívia, magros US$ 22,3 bilhões, estão sob o controle de capitalistas estrangeiros, sendo 18 por cento desses sob controle brasileiro. A Petrobrás é a maior multinacional no setor de gás e também controla 20 por cento dos postos de gasolina do país.
Só gás e petróleo, em reservas, representam US$ 100 bilhões de dólares, mas o PIB da Bolívia é de apenas 22,3 bilhões. E como isso é possível? Ora, é que os bolivianos ficavam com apenas 18% do imposto (royalty) sobre essas multinacionais. O MAS de Evo Morales, ainda na oposição, elevou para 50% e, agora, o Decreto ‘Heróis do Chaco’ o fixou em 82%. Imaginem quantos bilhões de dólares foram ‘saqueados’ da Bolívia em todas essas décadas!
Apesar desses números terríveis, a imprensa brasileira grita como se o nosso território estivesse sendo invadido por uma força estrangeira. Os líderes da oposição ao governo Lula só faltaram exigir que o exército brasileiro invadisse a Bolívia, como Bush fez no Iraque. É que não há nenhuma diferença. Lá é petróleo e aqui é gás!

Imaginem se a Bolívia tivesse poder econômico e militar para exigir o ressarcimento de todo o saque do passado, perpetrado pelas mesmas multinacionais que ainda estão lá. Alguns jornais e revistas daqui, no lugar da tinta, usariam sangue em seus editoriais. E tudo “em nome dos interesses nacionais”. Será que está mesmo em jogo o ‘interesse nacional”?
Há 6 anos que FHC vendeu cerca de 40% do capital da Petrobrás para os capitalistas de Wall Street e 19% para empresários brasileiros como Benjamin Steinbruch e Daniel Dantas. O presidente tucano forçou o Brasil e suas empresas, como a indústria cerâmica, cimenteira e de vidros, a mudarem sua matriz energética hídrica. Tudo para atender os “interesses nacionais” de empresas como Repsol, Total, Amaco e Enron, que detinham o controle de reservas de 400 milhões de metros cúbicos do gás boliviano.
Mas, quem usa uma botija de gás em casa, pensa que esse assunto tem a ver com ele. Quando se fala em gás, todo mundo olha para a sua botija na cozinha. Então, os números aparecem para clarear nossa mente. O gás de cozinha teve um aumento de 2,2% no governo Lula contra 420% no de FHC, aquele mesmo governo que fez o contrato com a Bolívia para trazer, via gasoduto, 25 milhões de metros cúbicos de gás. Estranho, não?
E quanto dessa monstruosidade de gás vai para a cozinha do brasileiro? O gás utilizado nas residências (3%), no comércio (2%), na área de serviços (público e privado) e no transporte com gás natural veicular (GNV) fica em torno de 15% do consumo. Por outro lado, só a indústria consome 79% de todo o gás boliviano que chega ao Brasil.
Um aumento do gás interferiria na vida do brasileiro, não por causa do consumo doméstico, mas devido à política anterior do governo FHC, que sabotou a nossa matriz energética hídrica. Agora, por causa da ação soberana de um outro país, o Brasil sofrerá os prejuízos. Dessa forma, o caminho não é “se irritar com Evo Morales”, pois quem nos ferrou foi FHC.
O caminho, agora, é encontrar saídas ao médio prazo. Por enquanto, só nos resta a difícil trilha da negociação. Do contrário, se tivéssemos os falcões do PSDB no governo da República, eles levariam o Brasil ao confronto diplomático. Então, Evo Morales, para não se desgarrar do profundo e histórico sentimento nacionalista boliviano, fecharia os dutos.
Seria o desastre econômico na Bolívia e o caos no abastecimento do Brasil. É o que sonham as multinacionais, ofendidas pelo grito dos ‘Heróis do Chaco’. Por aqui, também gritam os velhos falcões da política brasileira, com suas asas quebradas na última eleição.

A lição boliviana e suas contradições

Por Eron Bezerra

Nos anos 90, o neoliberalismo impôs a governantes submissos e a parlamentares sem um projeto de desenvolvimento nacional uma série de mudanças na estrutura desses países: fim do conceito de empresa nacional e estrangeira, quebra do monopólio do petróleo, abertura indiscriminada da economia e privatização de setores estratégicos.
Isso permitiu às multinacionais adquirir reservas de petróleo, gás e ferro, eletricidade, telecomunicações e até mesmo a água, como no Amazonas.
O neoliberalismo eliminou direitos trabalhistas, aprofundou a miséria, transferiu patrimônio público para a iniciativa privada e dilapidou os recursos naturais. Os países, que já derrotaram essa política, procuram retomar o controle de seus recursos naturais. O que ocorre na Bolívia e, provavelmente, se repetirá no Peru, com a vitória de Humala, é a expressão dessa contradição e não um fato isolado.A British Gas, a francesa Total, a espanhola Repsol YPF, e a Petrobrás - responsável por 15% do PIB Boliviano e por quase 10% das reservas de gás do país - pagam 5 centavos de reais pelo m3 de gás. Comprariam toda a reserva de 680 bilhões de m3 com algo como 16 bilhões de dólares. Obtém lucros e correm riscos inerentes ao capitalismo, inclusive o de eventuais processos de nacionalização, como ocorreu em 1937,1969 e agora. São vítimas da política neoliberal.A Bolívia é um país pobre, cujo PIB de 9 bilhões de dólares é menor do que os 18 bilhões faturado pela ZF de Manaus em 2005. Se não vender seus recursos naturais pelo menos por um preço justo, seu povo não terá perspectiva. É o que pretende fazer. O caminho escolhido talvez não seja o mais simples, mas eles não têm “um novo caminho, apenas um novo jeito de caminhar”, conforme ensina o poeta Thiago de Melo.A grande lição desse episódio é que não se pode depender de recursos alheios em setores estratégicos. A Petrobrás precisa concentrar seus esforços no Brasil para, enfim, viabilizar o gasoduto Coari-Manaus, Coari-Porto Velho e a exploração da bacia de Santos, dentre algumas de suas grandes reservas.
E a grande contradição é a postura de políticos neoliberais e de panfletos como a revista “veja”.
No auge do neoliberalismo esses políticos e seus “escribas de aluguel”, tudo fizeram para destruir a Petrobrás, indo da proibição da empresa fazer investimentos à tentativa de privatiza-la. Agora, repentinamente, passaram a demonstrar “grande preocupação” com os interesses da mesma na Bolívia.Destilando um mal disfarçado ranço autoritário e expressando uma injustificada arrogância contra um povo irmão pobre, reconhecidamente frágil e sem maiores recursos bélicos, esses arautos do autoritarismo recomendam uma “ação enérgica contra a Bolívia em defesa dos interesses da Petrobrás!”.Ah, como eu aplaudiria se essa “coragem” fosse contra uma ameaça real, digamos, os Estados Unidos. Mas para esse eles só batem palmas.Como “a história não se repete, a não ser como farsa ou tragédia”, essa repentina mudança em relação à Petrobrás, que eles chamavam de “petrossauro”, está na categoria da farsa. Como?Apesar de ter o controle administrativo da empresa, o governo só detém 32% de suas ações. Pequenos acionistas, incluindo trabalhadores, controlam 9%. O restante foi privatizado no governo FHC: 40% foi negociado em Wall Street e 19% foi parar nas mãos de especuladores como Daniel Dantas (Banco Oportunity), aquele que na CPI dos Correios recebia tapete vermelho da turma do PFL/PSDB.
Logo, se a Petrobrás for obrigada a pagar um preço maior pelo gás boliviano e não puder repassá-lo aos consumidores, como Lula tem afirmado, a conseqüência será a redução de sua lucratividade e a conseqüente queda de rentabilidade dos ativos desses especuladores. Eis a causa da mudança de comportamento.
A Petrobrás, não só pelas suas conquistas - dentre elas a da auto-suficiência em petróleo – mas, especialmente, pelo seu caráter estratégico, sempre mereceu e continuará merecendo especial atenção de todos os verdadeiros patriotas.
Essa gente, todavia, nunca se preocupou e nem se preocupa com a Petrobrás. A preocupação deles é com os magnatas que controlam suas ações e a lucratividade dos mesmos.Ainda bem que pouca gente tem saudades deles!